terça-feira, 29 de novembro de 2011

RADICALISMO ISLÂMICO ENTRA EM CHOQUE COM A CULTURA ESPANHOLA.




Os 30 meninos de uma das classes de primeiro ano do Instituto de Educação Secundária Rusadir de Melilla [cidade autônoma espanhola, na costa do Marrocos] levantam suas flautas e tocam uma melodia. As de Suleiman e seu primo Abdelkrim (nomes fictícios para preservar suas identidades), ambos de 12 anos, repousam sobre suas carteiras dentro das sacolas. Desde que começou o curso os dois meninos se negam, primeiro a levar o instrumento à classe e depois a tocá-lo. Dão desculpas e evasivas. Lamia, 14 anos, irmã de Suleiman e aluna do terceiro ano no mesmo colégio, também não quer estudar música, mas mantém uma atitude mais dócil. Os três são espanhóis.
- Suleiman, por que não toca? - pergunta a professora mais uma vez.
- Não quero tocar flauta, não quero estudar música.
- Por quê?
- Não sei... não quero.
- A música é uma matéria obrigatória. Você não pode escolher o que estuda ou não. Pegue sua mochila e saia da classe!

Nenhuma das três crianças explica seu segredo, nenhuma se atreve a confessar à professora a razão pela qual não querem estudar música. Desde pequenos ouviram em seu entorno uma frase definitiva e perturbadora:
"A música é a trombeta de Satã", a encarnação suprema do mal. Suleiman, Abdelkrim e Lamia (também nome fictício), temem que o som de suas flautas os enfeitice e empurre para o pecado. Eles não querem pecar, alguém lhes disse no ouvido que os instrumentos musicais são proibidos em sua religião.
Como no Afeganistão durante o regime taleban ou na Somália, onde há um ano Moallim Hashi Mohamed Farah, um chefe do grupo islâmico Al Shabab, fiel aliado da Al Qaeda, deu dez dias de prazo para as emissoras de rádio de Mogadíscio pararem de transmitir música.

O salafismo cresce em Melilla e seus costumes mais rigorosos começam a aflorar nas aulas de alguns colégios públicos. É a estampa de uma minoria crescente, composta por alguns taxistas barbados, mulheres com burcas e niqabs e mesquitas radicais onde se explica sem rubor que cantar, dançar, ir ao teatro, ao cinema ou ver televisão é pecado.
"Logo nos dirão que o futebol está proibido", prevê Fátima, 25, residente no bairro de Cañada de Hidum, o mais deprimido da cidade.

O colégio Rusadir recebe mil alunos, quase na totalidade muçulmanos. Foi levantado há uma década no bairro do Tiro Nacional e ostenta o recorde de fracasso escolar da cidade e um dos maiores da Espanha. "De cada 200 alunos que começam o secundário obrigatório, só 30 terminam. Quase a metade dos pais é analfabeta", afirma seu diretor, Miguel Angel López Díaz.
Suleiman e Abdelkrim, os primos que se negam a estudar música, não entram nessa estatística: os dois são bons alunos.
Suleiman tem enormes olhos negros, rosto redondo, cabelo curto e um olhar doce e confiante. Veste calças de brim azul-marinho, camiseta branca e tênis esportivos. Em Melilla é o dia de Aid el Kebir, a festa do cordeiro ou do sacrifício, e ele não foi à escola.

"Como conseguiu meu endereço", pergunta na presença de Azzid, seu pai, um marroquino de 46 anos que mora há 21 na Espanha e se apoia em sua camionete estacionada diante da casa.
O menino responde com monossílabos até que finalmente se decide: "A música é má e não serve para nada. No ano passado também me neguei a estudar e não me disseram nada. Me deram insuficiente e nada mais.

Este ano começaram os castigos. Fui castigado três vezes. Eles me dizem: 'Pegue a mochila e saia'. Um dia passei várias horas de castigo e perdi várias aulas".

- Por que a música é ruim? Explique-me.
- Eu sei que é ruim. Sei que me causaria dano. Para minha cabeça, meus pensamentos. A música não é boa para as pessoas. Sei disso desde pequeno. Há outro menino como eu (seu primo) que também não quer estudá-la.
- Por que não assiste às aulas e evita os castigos?
- Não quero nem pensar nisso. Não quero tentações. Nunca estudarei música, mesmo que tenha que deixar o colégio.
Vou à aula mas não faço nada, não escuto, não aprendo, não participo. Tento pensar em outra coisa. Tento não escutá-la.

Azzid, seu pai, tem barba longa, veste uma túnica escura e calças suficientemente curtas para deixar ver os tornozelos. É o sinal dos que se consideram puros e autênticos muçulmanos, o perfil cada vez mais frequente nas ruas e em algumas mesquitas de Melilla.

Viveu e trabalhou 15 anos em Barcelona, onde nasceram seus dois filhos. Há seis se estabeleceu nesta cidade de 71 mil habitantes, a metade muçulmanos, para ficar mais perto de sua família marroquina.
Azzid evita explicar o que representa a música para ele, mas opina em um perfeito espanhol sobre a posição do filho.

- O senhor disse ao menino que a música é pecado?
- Ele tem convicções muito fortes e ideias firmes. Sabe o que quer desde pequeno.

Não acha? Aqui dizem que há liberdade religiosa, mas não é verdade porque depois o obrigam a estudar coisas que vão contra sua religião. Não é uma contradição?
- A música é uma matéria obrigatória.
- Eu sei que é, mas o senhor já viu que ele não quer estudá-la e eu não vou obrigá-lo a fazer isso. Que mudem a lei, que lhe deem liberdade de estudá-la ou não.

O menino não está fazendo o que dizem seus pais?
- É uma decisão dele. Com a menina, minha outra filha, acontece o mesmo, também não quer estudar música. Os dois pensam igual.

Azzid afirma que seu filho não vai ceder e confessa que pretende tirá-lo do colégio. "Estão partindo seu coração, e se não o deixarem continuar estudando aqui o levo a qualquer outro país. Vou junto com ele. É bom estudante, dos melhores de sua classe. Eu disse ao diretor que me mostre por escrito por que o expulsam, e ele me levou para outro lado. Na última vez em que o peguei depois de um castigo ele estava amarelo. Estão a assediá-lo com os castigos.
Está perdendo a paz que uma criança deve ter. Por que não respeitam sua forma de pensar e viver? Tenho medo que isso o afete e estrague seus estudos. Quem será o responsável?"
- O senhor não se considera responsável?
- Não.

"Como soube onde moramos?", pergunta de novo Suleiman, antes de atravessar o portão de casa, perto da mesquita central da cidade.
A dez minutos a pé de sua casa vive a família de Abdelkrim, seu primo. A residência está fechada durante os dias da festa do cordeiro e as ruas estão vazias. A maioria dos moradores atravessou a fronteira para visitar parentes no Marrocos. Há várias semanas a mãe de Abdelkrim apareceu, envolta em sua burca preta, na porta do colégio Rusadir, mas não a deixaram entrar. O diretor havia chamado os pais das duas famílias para lhes informar sobre a negativa dos meninos a estudar música.

Miguel Angel López, diretor do colégio, lembra assim: "A professora de música me avisou que dois meninos se negavam a estudar. Não traziam a flauta, não faziam os deveres, não tocavam. Quando veio a mãe de um deles, não a deixamos entrar. Não posso falar com uma senhora da qual não vejo o rosto. Não é permitido entrar assim no instituto. Passou uma irmã do menino, de cerca de 20 anos, e lhe explicamos que aqui não se estuda à la carte, que a música é uma disciplina obrigatória.

Tentamos convencê-la de que a linguagem musical é necessária, que é uma forma de expressão. Sem dizê-lo abertamente, reconheceu que era uma questão religiosa, que a família é muito ortodoxa. Disse-nos que falaria com seus pais."
Abdelkrim, 12 anos, no foi no dia seguinte com sua flauta e assistiu à aula. "Colocou-a em cima da mesa mas não queria tocá-la. Acreditam que a música é pecado, esse é o problema, embora os meninos não o confessem. O que fazemos com um menino que se nega a estudar uma matéria?

É a primeira vez que encontramos um caso parecido", afirma o diretor em seu escritório. López teve uma conversa parecida com Azzid, o pai de Suleiman, e o primeiro insistiu que a decisão era do menor: 'Veja como ele não quer, o que posso fazer se ele não quer?', disse-me o pai diante do rapaz. Tenho medo de que isto se amplie e contagie outros meninos." A direção do instituto Rusadir enviou um relatório para a direção de Educação.

Abdelila, 44 anos, natural de Nador (Marrocos), é o imame da "mesquita Branca", na Cañada de Hidum, o centro religioso mais rigoroso e onde se concentram os barbados. Abdelila vive aqui há 11 anos, mas não fala espanhol, como a maioria dos 12 imames marroquinos que dirigem as orações nas mesquitas da cidade. Na última segunda-feira, dia da festa do cordeiro, seus fiéis rezaram em um estacionamento próximo do templo.
Não foram à grande concentração muçulmana, mais de 5 mil pessoas, que subiram para rezar junto ao quartel da Legião. Não querem misturar-se com eles. O imame veste uma túnica de tons dourados e descansa sobre um tapete antes da oração do meio da tarde. "Se você escuta música e lhe toca o coração, não lhe chega a leitura do Corão. O islã diz que a música é pecado. Está escrito. A música é o contrário do Corão e o guia pelo mau caminho", afirma com um sorriso.

- E se a letra falar de paz e amor?
- Não importa a mensagem, não importa a letra. O senhor não entende que é um grande pecado? Não podemos escutá-la, nenhum bom muçulmano deve ouvi-la. Como vamos permitir que nossos filhos se contaminem com ela?

Um dos filhos de Abdelila surge no quarto contíguo à mesquita e o imame confessa que o menino não ouve música, "exceto a de alguns desenhos animados". "Para o crente é muito fácil. Há muitos meninos de 14 ou 15 anos que são muito crentes. Há muita gente que pensa como nós, não somos uma minoria." Mohammed, 34 anos, fumigador e fiel da mesquita, declara: "Não a ouço há quatro anos. Não é boa para o bom muçulmano".

Às 16h20, cerca de 30 fiéis, todos barbados, com túnicas e calças que deixam ver os tornozelos, chegam para rezar. O centro foi construído em 2005, é pintado de branco e aparece em relatórios da polícia e dos CNI. Seus responsáveis negam qualquer relação com o salafismo, uma das correntes mais radicais do islã.

A Cañada de Hidum ostenta o maior índice de desemprego e fracasso escolar. Durante as recentes eleições para a Assembleia de Melilla, grupos de jovens queimaram contêineres em protesto pela vitória do PP, que obteve 15 dos 21 assentos.
Afirmavam que com Juan José Imbroda, presidente da cidade, os planos de emprego não chegariam "nunca" ao bairro. O encontro com os "estranhos" acontece na estrada que leva a esse bairro, o mais marginal.

Ao anoitecer, Mustafá, de 40 anos, um dos promotores da "mesquita branca", conversa sob as estrelas com cinco de seus amigos. Sentados em cadeiras de tesoura, vestem túnicas escuras e exibem orgulhosos seus tornozelos e longas barbas. Todos cobrem a cabeça com gorros de lã ou bonés de crochê. Parecem tirados de uma estampa do Paquistão ou Afeganistão. Sabem que são estranhos para os demais, mas se orgulham de sua diferença. "Anote isto. O islã começou como algo estranho e voltará a ser estranho como começou. Bem-aventurados serão os estranhos, aqueles que permanecerem firmes enquanto os demais se degeneram", espeta Mustafá.

Eles são os "firmes", o resto, os 5 mil muçulmanos que na última segunda-feira subiram para rezar unidos junto ao quartel da Legião, representam os que degeneram. "Dizem que são muçulmanos, mas não são. Muito poucos sabem o que é o islã em sua essência pura. Utilizam-no para seus interesses mundanos e materiais. Aparentam uma coisa, mas são outra. Nossa relação com eles é de indiferença. Eles nos pintam como radicais e extremistas. Quem são os terroristas? Os que atacam um país com bombas, matam crianças e mulheres, ou os que defendem sua casa? Mudam o nome das coisas."

Mustafá é o único que fala, os demais escutam. Todos são casados e têm filhos pequenos. Nenhum ouvirá nem cantará uma canção. "Há crianças que não querem estudar música? Como vão estudar música se é proibida? Dizem que se não estudarem os suspenderão do curso.

É como viver em uma grande prisão, como os muros que cercam esta cidade. A música é para as feiras, a música é a trombeta de Satã." Osama bin Laden, o chefe da Al Qaeda morto há meses em Abottabad (Paquistão), definia a música com uma frase parecida com a de Mustafá: "A música é a flauta do diabo".
- Por que é tão ruim para vocês?
- Porque leva as pessoas a fazer coisas proibidas, porque distrai e contamina.
Mohamed veste uma brilhante túnica azul e é o único que se atreve a intervir enquanto seu companheiro fala. "Há outros problemas além da música, os colégios não os deixam usar o hijab. Para nós hijab [lenço islâmico] é o niqab [véu que permite uma rede sobre os olhos]."

A grande maioria dos muçulmanos de Melilla, mais de 30 mil pessoas, não pensa como "os estranhos". "Você os cumprimenta com a saudação de paz e nem lhe respondem. Acreditam ser os puros", diz Mohamed, um dos coveiros do cemitério muçulmano Arrakma.

Chadia não voltou à escola. Chadia, 15 anos, não voltou ao instituto Rusadir de Melilla. A menina espanhola abandonou os estudos no terceira ano do secundário porque não lhe permitiam ir ao colégio com sua burca preta, completamente coberta e com luvas até o cotovelo.
Em seu relato, publicado em "El País" em julho passado, afirmou que se matricularia este ano, mas não o fez.

Miguel Angel López, o diretor do colégio, afirma que não sabem nada sobre ela: "A menina tem de se matricular. Se não se matriculou está fora da rede escolar. Não sabemos se continua aqui ou foi para outro lugar. Não sabemos nada sobre ela. Agora já não é mais um caso de absenteísmo escolar".


Chadia [nome suposto para preservar sua identidade] continua morando em Melilla junto com sua mãe, de 42 anos, na mesma residência, uma casa alugada e sem elevador de 90 metros quadrados, segundo afirmam seus vizinhos. "Não está em casa, logo vai completar 16 anos e pode fazer o que quiser", diz uma voz feminina muito parecida com a dela do outro lado da porta.

A escolarização é obrigatória até os 16 anos. E Chadia vai completá-los em fevereiro, mas supostamente não está estudando. O Ministério da Educação e a Promotoria de Menores atuaram em seu caso. "Não me importa perder o curso; se não me deixam usar a burca, não quero estudar. Quero fazer algo útil", disse em julho passado.

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